Eu gostaria, antes de discorrer propriamente sobre a peça T³, apresentar um trecho do texto “Ser Adro”, de Georges Didi-Huberman, que me parece um interessante material para propor diálogos com a obra da Súbita Companhia de Teatro, que abriu a Mostra Drama_1, realizada pela Companhia BifeSeco.
O trecho em questão foi extraído de uma obra chamada “Ser Crânio: lugar, contato, pensamento, escultura” em que Didi-Huberman discute a obra de Giuseppe Penone. Trata-se de uma escrita que privilegia a análise das esculturas do artista italiano, inseridas no campo ampliado da arte contemporânea, mas que, aqui, é tomada como um registro possível de ser apreendido como estímulo-fundamento para essa análise porque o enfoque “não é mais o objeto, mas a espacialidade” – esse posicionamento e as discussões que daí provém criam aberturas para se pensar a montagem, dirigida por Maíra Lour, pois toma o artista como aquele responsável por ativar o corpo, a espacialidade, o pensamento – na obra do filósofo o ofício artístico é pensado em relação a atividade da escultura e aqui, dada a finalidade, pensado em relação ao evento cênico.
Em francês as palavras être âitre (ser adro) tem pronúncias semelhantes e, na perspectiva de Didi-Huberman, o sentido de uma se comprime na outra, indicando, dessa forma, também o comprimento entre o ser e o espaço – uma relação que, complexa, está para além do sentido primeiro de “relacionar-se” e se aproxima a uma ideia de “fundir-se”, embora não seja assim, tão simplista quanto soa (é importante lembrar, aliás, que o recorte feito é muito ínfimo). Ele diz: “Aristóteles pensou o coração como sede do pensamento. Depois a cabeça teve essa honra. Galiano designou diversas funções mentais para as diversas partes do cérebro. Mas como continua sendo difícil pensar (imaginar, apresentar, definir, mesmo questionar), esse lugar do pensamento! Sem dúvida, o interior de nossa cabeça continua invisível a nossos olhos. Quanto às impressões endógenas, às sensações kinestésicas [como se percebem a posição e o equilíbrio das diversas partes do corpo], elas são pobres e sugerem unicamente, segundo os psicólogos, “um domo ou uma caverna” que enchemos com nossas imagens visuais e nossas invenções autoscópicas [experiências sensoriais nas quais a pessoa tem a impressão de estar percebendo um segundo corpo próprio no espaço extracorpóreo].
Freud, por sua vez, disse “pode ser que a espacialidade seja a projeção da extensão do aparelho psíquico. Na verdade, nenhuma outra derivação. No lugar das condições a priori do aparelho psíquico segundo Kant. A psique é estendida, nada sabe disso.
Nada saber disso, desse lugar. Mas como ele tem presa sobre nós, como alcançamos, como nos toca? Os artistas, sem dúvida não resolvem nenhuma das questões deste tipo. Pelo menos, deslocando os pontos de vista, revirando os espaços, inventando novas relações, novos contatos, sabem encarnar as questões mais essenciais, o que é bem melhor que acreditar responder a elas” (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 35-36)¹
O meu interesse em apresentar o texto de um filósofo, historiador e crítico de arte (que em um discurso múltiplo, associa-se a outros autores/pensadores para tecer sua escrita), não é afastar as discussões da manifestação teatral, mas, pelo contrário, integrar uma narrativa que aponte leituras outras – abertas, tal qual a proposição geral do autor em questão, que se opõe e se afasta veementemente das teses que indicam o “fim” ou a “morte da arte” (enunciadas por vários autores, dentre eles Hegel, Arthur Danto e José Ortega y Gasset).
Os pontos que me interessam articular são, essencialmente, três: as relações entre corpo-pensamento-espaço, a apropriação e a comunicabilidade das temáticas e a presença e o papel do artista.
O solo de Cleydson Nascimento “faz parte do projeto ‘Habitat’ de pesquisa continuada” em que a Súbita “se debruça sobre questões que envolvem a relação entre corpo/casa”. A peça se apresenta como “um convite para entrar no corpo/casa de alguém muito inquieto que deseja profundamente expandir-se no tempo-espaço, ir além dos limites do corpo, transfigurar a matéria, gargalhar da rigidez do pensamento newtoniano, dançar nu sem paredes, dar vasão para outra consciência humana, profetizar o quântico, observar a imensidão, ser o infinito” ². Nessa breve descrição estão reunidos os elementos que a companhia articula ao ocupar o teatro Novelas Curitibanas, utilizando-o como um espaço aberto, em que o concreto atesta a infinitude – tal qual o adro (não necessariamente enquanto a parte externa de uma igreja, mas como um espaço circundante, uma “área”. Nas palavras de Didi-Huberman, adro pode ser “a disposição interna das várias partes de uma habitação” e também pode designar “a intimidade de um ser, seu foro interior, o abismo mesmo de seu pensamento”).
O assunto principal da montagem é a física quântica, tida como um polo do qual surgem os afetos outros. A primeira aproximação do público com o tema se dá visualmente: as paredes do teatro estão tomadas pela escrita e pelo registro pictórico de fórmulas, palavras e imagens do universo quântico. O primeiro quadro apresenta o ator prostrado com um livro e uma maçã sobre a cabeça. Descartada a possibilidade de leitura do cenário, dada as proporções, vê-se o acontecimento que, de certo modo, dá o tom do que virá: o corpo inicia sua movimentação, que culminará em sua potencialidade extrema e se sobreporá a qualquer outro discurso possível porque se apresenta como o espaço no qual, necessariamente, todas as coisas convergem.
O riso, em gargalhadas, cala a leitura da obra “O ser quântico”, de Danah Zohar. A tentativa de se explicar a física newtoniana e os pressupostos da física quântica é substituída pela nomeação de um filme/livro best-seller. A maçã é mordida em um longo e sonoro ato. A promessa de que a “neurose” em algum momento se tornará o assunto. A cena de um desenho infantil é projetada sobre o suposto academicismo – as trajetórias, as distâncias, tão cruciais a temas tais como o “tele transporte” também são evocadas sobre esse aspecto: são adotadas metodologias que afastam o discurso explicativo-professoral e substituem-no pelo espaço, pelo corpo do ator e pela movimentação efetiva do público. O pensamento é construído, essencial e literalmente, com a tensão de um corpo em exposição e movimento que, com as trajetórias e ferramentas estabelecidas, requer a movimentação de outros corpos que deixam de ser corpos-espectadores e tornam-se corpos-atuantes.
“This sign is in spanish when you’re not looking” dizem as paredes, explicitando a inexorável presença, a impossível dissociação entre espaço-corpo-pensamento, fazendo lembrar a obra de Antoni Muntadas, de 2002, que registra em diferentes superfícies e em diferentes línguas a frase “Atenção: percepção requer envolvimento” – também o próprio texto de Didi-Huberman propõe percepções desse tipo em relação a obra de arte quando se refere a Henry Maldiney, os “adros da língua” e as “moradias do pensamento”: trata-se da singularidade, de um “estado de nascimento” da língua que surge a cada leitura da obra de arte.
O corpo que é casa, o corpo que é mundo. O espaço energético – vital, necessário, cambiável. O pensamento, nesse sentido, ainda que não se possa definir com clareza, parece estar no coração, em cada lado do músculo e também ali, no centro do espaço cênico – criando uma camada de metalinguagem que faz lembrar a todo o momento ser impossível igual experiência senão no teatro (e mais do que isso: senão ali, naquele exato momento). A representação do espaço é, então, continuidade da representação do corpo, em uma instância em que corpo é pensamento e o pensamento é tátil.
A relação (evocando aqui também a ideia de fusão) entre o ator e o espaço se efetiva quando, numa espécie de mal-estar, o artista mobiliza a mudança do lugar do público que precisa, necessariamente, deslocar-se e configurar formatos e espacialidades distintas para que a peça continue – a construção de um “todo”, a possibilidade de circulação, de novas espacialidades e visões, a “acessibilidade” sendo encarada em níveis e intensidades distintas. O movimento, a energia, o corpo-espaço e o espaço-corpo são, assim, deslocados física e concretamente. Um “fenômeno”, entendido em uma perspectiva kantiana (referida, indiretamente, por Didi-Huberman, quando cita Freud), é o objeto organizado espaço-temporalmente e seríamos nós, os seres humanos, os legisladores da natureza, responsáveis por tornar inteligíveis todas as coisas que aparecem diante de nós, fazendo uso de conceitos inerentes a categoria humana.
A relação de posse, a impressão de que é possível controlar tempo-espaço, de que somos capazes de fazer alterações a partir do uso de um simples interruptor, é interrompida quando, nesse jogo, a partir da noção de amplitude e infinitude, surge o mundo, em seu aspecto social, emergindo a partir de uma certa completude totalizante da vida e da realidade. “Os seus pais, a coca-cola e o papai-noel” estão todos juntos, igualmente conectados, no que se pode chamar “realidade” – a mesma realidade, “buraco negro”, que produz as crises (também quânticas) e que faz surgir o cansaço e o desejo de desistência. Trata-se de uma abertura que expõe o artista como aquele ser apto a deslocar os pontos de vista, revirar os espaços, inventar novas relações e contatos por encarnar as questões sem respondê-las – quando aparentemente perto de responder, desaparece: ficam ali os vestígios (ou as roupas). |