Sintoma da saturação de sensações e sinapses do estado de degradação social. Excessos de todos os tipos que poluem os corpos e mentes. Curtos-circuitos da era da informação inoculando de uma vez todo o coquetel de fundamentalismos, tragédias e banalidades que compõe a substância dessa civilização necrótica. Vinda das passagens obscuras da Bíblia, passando pelo decadentismo dandi de Oscar Wilde para entrar no teatro de guerra do mundo pós-moderno, surge Salomé! A mulher que pede a cabeça do profeta numa bandeja.
Contexto
Supersoldados treinados pelos serviços de inteligência de elite, mercenários de todo o mundo, militantes radicais, reacionários belicistas e maníacos ortodoxos se reúnem num bunker secreto nos arredores de Brasília. Eles esperam o Apocalipse para purgar suas almas violentas na fatídica luta contra o exército brasileiro e os utópicos sustentáveis liderados pelo profeta João Aplicativo, o batista. Essa é Roma XXI, distopia paramilitar imperial financiada por trilionários gnósticos que piraram errado na onda que Philip K. Dick tirou nos anos 70, quando espiou por trás da cortina da Matrix e percebeu que os últimos 2000 anos de história foram uma bad trip de romanos em coma lisérgico. E nesse império ressurreto o urubu-rei é o cangaceiro ostentação Herodes Carcará, que lidera as hordas ao lado de sua esposa, Herodíades Mossad, a criatura do serviço secreto israelense, treinada nas mais avançadas técnicas de assassinato e sedução, com altíssimo grau de kama sutra e um sistema reprodutivo ampliado para ser útero de bestas bombadas e letais, máquina de máquinas de matar, a doce mãe de Salomé. Esses foram os primeiros 10 minutos da peça. Só pra você se situar.
Em pleno século XXI, o teatro é uma catacumba. Há luzes, sons, alguns efeitos, mas nada dos gadgets e aparelhos fantásticos que submetem a atenção humana a suas maravilhas tecnológicas. Conseguem as pessoas, com seus novos reflexos digitais condicionados, prestar atenção num longo ritual primitivo dentro de uma catacumba? Mesmo entre as sensibilidades mais artificiais, é impossível não ser atingido pelas rajadas de metralhadora do texto faustiano na atuação feroz da Cia do Urubu. A quase esquizofrenia dos atores que interpretam mais de um papel ilustra o caráter fragmentado e alucinado da vida nas metrópoles e zonas de guerra, com suas patologias compulsórias e identidades comercializadas. Onde reage um sentimento de recusa à banalidade da vida tutelada, dos valores classe média, da civilidade hipócrita. Onde a disciplina trágica das batalhas e das operações táticas dá mais propósito, mais tesão de existir. É aqui que é possível transar orgias metafísicas em raves de sexo e sangue, trocar de genitais quinze vezes em cirurgias customizadas além dos limites da carne, espalhar sabedoria cósmica em líquidos batizados com nanocondutores. Sustentáveis, gnósticos, imperiais, transhumanos, transgênicos, transnadas, máquinas animalescas, corpos traumatizados, almas atômicas e cérebros turbinados. “Jamais serei civil!”
Fausto Fawcett deu um jeito de canalizar nesse espetáculo as pulsões bélicas e sexuais que são o motor do inconsciente humano e das tragédias que compõe a história da raça, com o humor e a ironia necessários pra lidar com o absurdo do real. Em uma digestão antropofágica da voracidade globalizada, a peça é uma descarga de nervos atiçados por um instinto de sobrevivência perverso e industrializado, destilado e engarrafado em doses cotidianas de ideologia e fé, disfarçadas de liberdade e esperança. Espiritualidade enlatada, Daime-Cola, ordem e progresso, desenvolvimento sustentável, sexualidade fluida, ataques terroristas. “Indivíduos foda-se” seguem seus impulsos em direção ao nada. Salomé é um retrato de uma civilização moribunda que não aceita sua morte e seus anticorpos mais ortodoxos se organizam para manter o império funcionando numa sobrevida que suga as forças de suas vítimas. Uma narrativa em que não há heróis ou anti-heróis. Aqui os protagonistas são reacionários, violentos, sujos demais para o toque de uma arte fresca. Para Fausto esses são os verdadeiros outsiders da era pós-hippie, pós-punk, pós-tudo. Uma rebeldia transformada em status quo. Uma anarquia de mercado onde vale a lei do mais forte. Nesse sentido, lembra os protagonistas do filme Salò, de Pasolini, que apesar da fonética, nada tem a ver com Salomé. Oferecendo uma figura distorcida, saturada, aparentemente distante porém presente, essas atrocidades não são mera fantasia, se trata de um hiper-realismo. Ela exibe a ferida aberta de um mundo à beira do colapso, manifestação de uma ansiedade apocalíptica pela grande catástrofe final, que deixou de ser um receio para se tornar um desejo coletivo. |