Alerta de spoiler: esse é o tipo de crítica que não consegue fugir de ser descritiva, já que se trata de um espetáculo bastante calcado na visualidade e sonoridade. Sem palavras (em português).
Ao entrar desavisado para assistir a Contos de Nanook (em cartaz até 16 de julho no Cleon Jacques), o espectador se depara com uma visão pouco usual hoje em dia. No lugar do cenário minimalista, mais sugestivo do que informativo e comumente usado, encontra um enorme manto de neve, com carcaças aqui e ali e um corpo que jaz no duro gelo. Sentir frio é imediato, independentemente de massa de ar polar chegando à cidade.
Está dada a largada para um espetáculo que apela sobretudo aos sentidos. Deixe o intelecto um pouco descansando, sob o risco de se aborrecer.
O impacto visual do cenário (Guênia Lemos) é acrescido de sons assustadores, como a respiração de humano ou animal à espreita. Tudo somado forma uma instalação que poderia ser um diorama de museu de história natural.
Mas aos poucos tem lugar a performance associada a essa visão de outro mundo. Temos uma releitura do que seria a vida dos índios inuítes num tempo indefinido, num confronto pela sobrevivência. Nos encontramos com a população indígena do Polo Norte, conhecida como esquimó, numa cena poética e lenta que traz pensamentos não antropológicos, mas humanos.
Esse retrato é trazido de forma a embasbacar e surpreender simultaneamente – não por acaso, esse é um dos mantras da companhia Setra, de Eduardo Ramos (direção), que realizou anteriormente Mommy (2016), entre outros. Como dito, é uma escrita cênica lírica, não destinada a contar uma história precisa, apesar de muita história e muitas estórias estariam contidas nela. Essa parte da dramaturgia veio de Léo Moita (autor de O homem do banco branco e a amoreira).
O relato em linhas gerais promove o encontro de um inuíte (Mauro Zanatta) e uma menina (Má Ribeiro), que passam a dividir a luta pela sobrevivência num inverno extremamente rigoroso (estamos falando de frio no Polo Norte, veja bem). Um urso polar (Bruno Lops) completa a tríade e dispara o clímax.
outro.
A chegada dos atores revela outra camada dupla de estranhamento e encantamento, com o incrível trabalho vocal (Edith de Camargo) e corporal (Airton Rodrigues) realizado durante cerca de três meses. Para completar a caracterização, o grupo usa peles e assustadores lentes de contato que tornam os olhos brancos quando se olha de frente.
Os sons e palavras que remetem à cultura inuíte foram pesquisados e trabalhados de forma a compor a dramaturgia sonora do espetáculo, que não tem palavras (em português).
O silêncio que reina no meio traz o desconcerto de se confrontar com a fala e a cultura do outro. Nesse caso, um outro de um tempo remoto e espaço mais ainda, que conhecemos apenas pelo termo pejorativo de esquimó (“aquele que come carne podre”, apelido carinhoso advindo do encontro com colonizadores).
O trabalho de corpo é ampliado pela presença da bailarina Malki Pinsag (que já havia roubado a cena em Guernica). Sua movimentação, ora sozinha, ora em parceria com Bruno, transformam a peça de instalação num show para os sentidos.
A soma de linguagens se completa com a relação intertextual com o filme Nanook of the North, de 1922, o primeiro documentário antropológico de que se tem notícia. A obra retrata uma família inuíte naquele início de século, suas caçadas e pescarias e a relação com um urso polar. O protagonista, Nanook, (“urso”) morreu de fome posteriormente em busca de alimento para o clã. |